MÉDICO POR VOCAÇÃO DE QUERER E VOCAÇÃO DE AMOR
Se a malária, medonha
doença até o fim da primeira metade deste século vinte, não causou maiores
estragos no município de São Domingos do Prata e adjacências, foi graças ao
humanitário clínico Dr. José Matheus de Vasconcellos que, exercendo
caridosamente o sacerdócio da Medicina, curou milhares de clientes com a
aplicação da dose mínima de 914, sucessora daquela ampola mágica
da quimioterapia moderna, a 606, descoberta pelo médico alemão Paulo Erlich,
Prêmio Nobel de 1908. Entre eles, os completamente curados, eu devo ser
contado, visto que fui picado pela anófele culicídeo transmissor do paludismo,
durante a noite do dia 13 para 14 de setembro de 1937, mal dormida na
vizinhança da Lagoa d'Aguapé. A minha cura foi total, definitiva. E imunizou-me
de tal maneira que nunca mais a febre se repetiu, mesmo quando, em 1938, passando
por Dakar, Capital do Senegal, na África Ocidental Francesa, lá fui picado pelo
transmissor da doença.
A propósito do Dr.
Matheus que, no Município de São Domingos do Prata, fez a mesma cousa que foi
feita, em escala maior, pelo Dr. Antônio Firmato de Almeida, no Município de
Itambacuri, posso, devo e quero afirmar que ele, também, foi honra e glória da Medicina
Nacional. Pois, acima de tudo, só queria ser visto como médico, como servidor
do povo, como agente promotor do bem-estar social, como Ministro de Deus
consagrado ao sublime serviço de zelar pela saúde dos seus clientes, maior de
todos os bens terrenos: Primum bene
valere.
Caridoso, estava
ciente de que o prazer de uma boa ação é o único prazer sem mistura de dor.
Ótimo clínico, sabia
acertar e ser eficaz em suas relações técnicas com os enfermos que o
procuravam, confiados na sua ciência e na sua capacidade de curar muitos males
do corpo. Muito bom diagnosticador, os seus diagnósticos rápidos sempre foram
corretos. Excelente terapeuta, sabia pôr em prática os meios adequados para
aliviar as dores e fazer que os doentes recuperassem a saúde perdida.
O clínico se
qualifica como tal enquanto procura ser terapeuta, aquele que antes e acima de
qualquer outra cousa, cura. De Gregário Marañón esta observação: Ninguém menos médico do que aquele que orienta
a sua arte ou a sua ciência para seu brilho pessoal, para sutilezas diagnóstico
que não levam consigo um incremento da eficácia terapêutica.
Dr. Matheus fazia
tudo que em si cabia por merecer bom conceito dos seus contemporâneos. Dia por
dia se ultrapassava a si próprio, impondo-se como sendo um dos melhores médicos
de Minas Gerais, de 1930 a 12 de agosto de 1968. Não era uma natureza comum. A
sua visão das cousas e dos homens se fazia através do prisma da bondade, a que
sua modelar existência conferiu o mais nobre sentido da vida que ele
considerava como instrumento do bem que os homens se devem uns aos outros. A
sua bondade nunca falhou, nem se cansou nunca. Era bondade inteira, pois nunca
houve meia bondade.
A sua Medicina era
cheia de muita simplicidade e de profunda humanidade, isenta de presunção e
mais isenta de ambição. Era clara, modesta e cordial. Para exercê-la como ele
queria, estava sempre disposto a renunciar ao que lhe era mais grato ao
coração: as horas de alegria e de prazer doméstico no gostoso convívio de sua bem-querida
esposa e de seus bons filhos. Era uma Medicina abnegada, desinteressada, visto
que seu nobre espírito sempre foi nobre demais para rastejar-se nas
mesquinharias da ganância. Era de grandes e de muitos sacrifícios, superiores,
às vezes, aos sacrifícios do sacerdote, porque este não tem obrigação de
atualizar os seus conhecimentos e de se aproximar tanto da miséria humana, com
a terrível carga de responsabilidade do médico. Em seu livro Vocación y Ética,
Marañón escreveu: O sacerdote sabe que
vai fazer seguramente um bem, enquanto o médico não sabe se, com toda sua ciência
e sua boa fé, acenará. E sabe menos se, acertando ou não, lhe acompanharão a
gratidão e o respeito do enfermo e de seus familiares.
Voltando a tecer
comentários a respeito da Medicina do Dr. Matheus, tenho ainda a dizer que ela
era, também, patriótica. É velando pela boa saúde do povo e valorizando-a que o
médico cuida do aperfeiçoamento da vida nacional. Até a segunda metade do século
dezenove, governantes e governados consideravam a saúde como um bem
exclusivamente privado. Depois foi que passou a ser considerado como fazendo
parte do bem comum, um bem social e até assunto de segurança nacional, em todos
os países. Estar com boa saúde é ter força para qualquer tipo de trabalho e
realizar qualquer obra. Sem saúde é impossível a qualquer homem colaborar para
o desenvolvimento e para o crescimento econômico da sua pátria. Gozando de boa
saúde, o homem é a origem de todo o progresso. Sem ela, a matéria-prima, a
máquina e o capital são instrumentos inúteis, inertes. Não valem cousa alguma.
A primeira riqueza de uma nação é-o homem, o seu sangue, o seu cérebro, os seus
músculos. Só o homem sadio trabalha com prazer e é recompensado com alto grau de
produtividade dos seus esforços.
A saúde e a
produtividade se complementam. São indispensáveis uma à outra. Produzir é
trabalhar. E o trabalho comporta riscos, causados pelo pó da terra, da pedra,
do carvão, pelas substâncias tóxicas, pela insalubridade do meio ambiente e do
clima reinante no meio em que as atividades são exercitadas, pela fadiga e pelo
desânimo provocado pelas doenças de mais ou menos duração, como a febre malária
e por outras moléstias que afetam as condições físicas e mentais do
trabalhador.
Como o homem passa pelo
menos a terça parte de cada dia no trabalho, a sua saúde depende da natureza e
das condições desse trabalho.
Dr. Matheus nunca foi
alheio à dor de quem lhe estava perto, e nunca tapou os ouvidos aos angustiosos
clamores de quem, com urgência, precisava do socorro da Medicina. Sua natureza
individual, sua formação moral, sua educação cristã tiveram parte importante em
que ele fosse o médico que foi, uma pessoa que, através de sua vocação
específica, de seus múltiplos e esplêndidos talentos, mostrou uma singular
versão católica do pomo humanas da Antiguidade, aquele a quem nada de humano
lhe pudesse ser indiferente. Era um humanista, no mais puro sentido da palavra.
Tinha todos os poros da alma permeáveis aos sentimentos de compreensão,
generosidade e tolerância, os quais caracterizam os homens que foram benfeitores
do povo.
Ser humanista é viver
com profundidade, é saber recolher na tigelinha da experiência aquela gota de
sabedoria que a vida destila em cada dia, é ter aberta a generosidade da alma a
mias as compreensões.
Médico por vocação de querer e por vocação
de amor, sabia que só se é dignamente médico com a ideia
gravada no seu coração de que trabalha com instrumentos ainda imperfeitos e com
remédios de utilidade insegura, porém com a consciência certa de que até onde não
pode chegar o saber, sempre chega o amor, a Caridade.
Entre seus grandes
acertos e ocasionais equívocos, homem de categoria superior, habilidoso
artífice de si mesmo, ele soube compor o brilhante e variadíssimo mosaico da
sua personalidade e, com certeza, já foi julgado piedosa e generosamente por
Deus.
Enquanto viveu, ninguém
se atreveu a meter a língua mentirosa na sua honra pessoal.
Ele foi um homem a quem
pertenciam, essencial e harmoniosamente, o saber, o amor ao próximo e o
profundo sentimento de comunidade. Sou dionisiano, disse-me ele, um dia. E o
era, mesmo. Desde a superfície da epiderme até a medula dos ossos, até os
recantos mais íntimos de sua bela e grande alma. E sentia o orgulho de sê-lo. Também nesse particular parecia
comigo, pois sempre me declarei por calambauense. Pensávamos da mesma maneira.
Tínhamos como certa, exata e correta a lição de Aristóteles: Dois amigos, uma
alma em dois corpos.
Deu-se a conhecer por
muitas curas que o seu olho clínico, a sua ciência, a sua sabedoria e a sua
experiência realizaram em muitos municípios do Vale do Rio Piracicaba. Por
isso, seu bendito nome foi voando nas asas da Boa Fama por diversas regiões de
Minas Gerais e, nelas, foi merecidamente venerado.
Se sempre teve quem
gosta e vive de elogios, e os busca, e até os provoca e os solicita de mil
maneiras, Dr. Matheus não era assim. Pois era o contrário, desambicioso de
honrarias, em tudo pesando o relativo das cousas e o transitório dos juízos dos
homens. E se não desprezava os louvores era para não descontentar quem o
louvava, fazendo inteira justiça a seus notáveis méritos.
Humilde, ele possuía
virtudes tão simples e discretas que elas davam petições à Opinião Pública para
que não as divulgasse.
Dionísio nunca teve, e não sei se algum dia
terá, um filho melhor e mais ilustre do que ele: Nec enim melior vir nec clarior, como
diria Cícero. Este o motivo por que, enquanto existir a sua terra natal e
enquanto durar São Domingos do Prata, a lembrança dele haverá de ser, para
ambas as cidades, razão de alegria e de glória: Et hae civitates, dum erint, laetabuntur atque gloriabuntur.
Quanto a mim, o que
posso e devo afirmar é que me será difícil, quase impossível, ter outro amigo
maior do que ele: Moveor- enim
tali arnico orbatus qualis, ut arbitror, nemo unquam erit, ut confirmare possum,
nemo certe fuit.
Porque tinha uma
natureza que lhe foi a mestra por excelência do bem viver: naturam optimam bene vivendi ducem, e porque sempre existiu, entre
nós, a mais perfeita conformidade de desejos, de gostos, de pareceres e de
pensamentos: voluntatum, studiorum, sentenciarum
summa consensio, a recordação da nossa amizade me ficará até meu último dia
de vida: Amicitiae nostrae memoriam spero
sempiternam fores
Dr. Matheus foi um homem bom, muito bom. De coração bom e de bom
coração. Ótimo. Excelentíssimo. Todas
as horas lhe eram horas de fazer o bem. O seu relógio só marcava as melhores
horas: Horas non numero nisi serenas,
as horas de ele fazer feliz o próximo, que é qualquer pessoa: Proximus hominis omnis homo. Por isso é
que todos que tiveram a ventura de conhecê-lo lhe devotavam verdadeira amizade:
Nisi is bonis veram amicitiam esse non
posse.
Seu sincero amigo, assim de perto como de longe, na bonança e
preferencialmente na tormentosa tempestade, agora, quando encerro estas linhas
sobre ele, sinto-o aqui ao meu lado, pertinho de mim, aureolado de suas
formosas virtudes, banhado nos resplendores da Luz Eterna. Tenho a agradável
impressão de que o estou vendo, de corpo inteiro, surgindo da minha lembrança e
da minha saudade.
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Orgulho de ter nascido nas mãos deste médico e ter o nome de JOSÉ MATEUS.
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