sexta-feira, 25 de novembro de 2016

A HISTÓRIA DA FARINHA SOMI 20 - Rosemary Penido Alvarenga

Do livro "Morro Escuro", de Rosemary Penido Alvarenga.

A CARNE VEGETAL

- O que mais me preocupa, Dr. Caux, é o raquitismo do povo. Muitas doenças, a maioria é causada pela alimentação deficiente, as crianças sem reservas para suportar uma infecção...

Meu sogro e eu trocávamos ideias.
Era uma conversa séria, mas descompromissada.
O Dr. Caux deixava de lado o jornal, acomodava-se numa cadeira reclinável, o vento da tarde a brincar com seus cabelos leves, suavemente, como uma carícia.


Ele sofria de asma persistente. A respiração se fazia difícil, o corpo estava mais magro, o nariz sobressaía no rosto fino, a testa aumentada por entradas fundas.

D. Didina passou rapidamente. Foi ver o biscoito no forno, pois um cheirinho bom já nos despertava a gula.

Meu sogro concordou comigo: - O brasileiro se alimenta muito mal. 
A pobreza é grande e falta esclarecimento, higiene. Falta uma campanha educativa do governo.

- É triste o que a gente vê por aí, doutor. Na zona rural, então, é um horror! Nenhuma assistência, o povo não planta, não tem horta... às vezes uns pés de banana, de mandioca, algum pé de cana e, quando muito, uns pezinhos de feijão.

- Lá, pelo menos, eles têm o seu franguinho, de vez em quando, algum capado, como eles dizem, alguma paca. Na cidade não comem proteína, tão necessária. A carne está tão cara!

 - Poderíamos resolver nosso problema na cozinha e não na farmácia, como se expressou Paiva Ramos.

 - O Brasil, continuou o Dr. Caux, poderia resolver muito bem a carência de proteínas com o uso da soja. Terreno, não falta. Poderíamos alimentar não só os brasileiros, mas outras muitas nações se nos dedicássemos à agricultura.

 - Mas soja substituiria mesmo a carne?

 - O feijão soja, Mauro, é uma planta milagrosa! Além de fácil cultura, é riquíssimo em proteína, nada inferior à carne, ao leite e ovos. Custa muito menos e ainda serve de adubo para o solo, enriquecendo-o, quando empobrecido.

 - Fale mais dela, Dr. Caux. Quem sabe a gente promove uma campanha em Itabira? Falar de agricultura era com ele mesmo! Sabia tudo. Entusiasmava-se. Poderia me dar informações por um dia inteiro, se eu quisesse.

 - No oriente, é alimentação básica. Por isso o povo é taludo, chega à velhice com saúde e disposição para o trabalho. Atinge idades altíssimas!

 - Em vista de nosso nível de vida...

 - Pois é. Nessa última guerra, a farinha de soja teve papel notável na ração, dos soldados. Os combatentes alemães levavam na mochila o suficiente para três dias.

- Sabe que estou me interessando? Já tinha lido a respeito, mas não sabia tanto. Dizem que é chamada carne vegetal; não é?

 - Carne vegetal, sim, Mauro. A proteína que há em um quilo de soja equivale à de dois quilos e meio de carne, ou à de treze litros e meio de leite, ou de sessenta e sete ovos!

 - Puxa! É coisa para não se desperdiçar! Eu não sabia que era tão rica...

 - A soja poderia salvar a raça brasileira!

 - Vou estudar o caso, Dr. Caux. Vou imaginar um programa, procurar instruir o povo daqui os estudantes, as professoras. Talvez incentivar o seu plantio.

 - É uma boa campanha. Se você conseguir... difícil é mudar os hábitos do povo! A soja tem gosto forte; quem não conhece, estranha.

D. Didina nos chamou para o café. A mesa estava farta, os biscoitos de polvilho se rachando de tão grandes, ainda nos queimando as mãos.

Os meninos se regalavam com as jabuticabas, pendurados nos galhos mais altos, confundidos com as folhagens. Os frutos negros, como bolinhas de gude, brilhavam nos caules, suculentos.

 - Deixe eles - disse minha sogra. Pelo menos, a gente come em paz.

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PRIMAVERA INESPERADA

Fiquei com a cabeça quente com a tal da soja! Imagine, uma planta fácil de cultivar, como me disse o Dr. Caux, tão rica e tão desconhecida para nós, os brasileiros!

Troquei ideias com o jovem agrônomo Paulo de Souza, recém-chegado à cidade para tocar o Posto Agropecuário.

Falei com outro agrônomo, o meu compadre estrangeiro George Grunnup. Convenci-o a plantar a tal leguminosa.

Pedi a alguns fazendeiros que o fizessem. Pensei no que me disse o Dr. Caux sobre a dificuldade de mudar, de uma vez, os hábitos alimentares.

Quando o George me trouxe em mãos a soja, pronta para a colheita, inventei passá-la no moinho conjuntamente com o milho, em proporções de 80% para esse e 20% de soja para não comprometer o sabor. Estava inventado o Somi-20, como batizamos nosso produto. Encomendamos até saquinhos, com rótulos. Quando o Somi-20 me veio, empacotado, todo lindo, era como se recebesse um filho; quase a mesma emoção. Pensei em torná-lo conhecido, divulgá-lo, fortalecer as crianças não só de Itabira, mas de todo o Estado, quem sabe do Brasil?

Eu tinha sonhos visionários, um ideal do tamanho do mundo. Não fazia economia.
Introduzi o alimento nas escolas, para as sopas. Pus à venda nos armazéns, fiz palestras, imprimi folhetos pagos pelo próprio bolso.

Cheguei a debater com médicos até na Rádio Inconfidência, de Belo Horizonte.

Procurei apoio da Prefeitura, mas ela era surda aos meus propósitos. Não lhe interessava o programa, porque era meu e eu era de partido diferente. A guerra de siglas continuava. A ignorância da perseguição política estava acima de qualquer ideal. Eu era sempre perdedor. Chegaram a jogar dinamite em minha varanda para festejar uma vitória!

Quando o Grunnup deixou Itabira, morreu o Somi-20, adormecendo o meu sonho.

Eu era só um médico do interior com visões de príncipe. Cumpria voltar a meu mundo, o Brasil. Cumpria continuar a ver o raquitismo, as doenças infantis arrastando crianças à morte.
Querer mudar o sistema era dar murro em ponta de faca; eu não tinha esse poder.

Mas, agora, que bela surpresa! Precisei chegar aos meus 85 anos para descobrir que a semente estava viva. Ela começa a brotar, alimentada por minhas lágrimas de médico antigo, como diria o Drummond.

A prefeitura inaugura o Centro de Beneficiamento de Soja "Dr. Mauro de Alvarenga".
Não estranhei a homenagem; eu mereço. Até seria injusto colocar outro nome que não fosse o meu. Não vou me fingir de modesto a essa altura da vida, isso não.

O velho tem o direito de ser autêntico, de se dar esse direito, pelo menos isso.
São quarenta anos passados, acho que sim. O prefeito atual foi meu aluno, o Luiz Menezes. O Secretário de Saúde foi amigo de infância de meus filhos, o Marco Aurélio. Neles ficaram minhas palavras; meus ensinamentos não foram em vão. Neles brotou minha pobre semente adormecida. É primavera.

Quem sabe agora explode meu sonho? Quem sabe o nosso exemplo arrasta outras belas iniciativas? Não estarei aqui para ver, mas com as mãos feridas com a tal ponta de faca, vejo meu sangue fecundar a terra.

Como dizem meus netos: - Valeu!

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Sebastião Leme de Caux, o colaborador que enviou esta matéria destaca a trajetória do Dr. Mauro Alvarenga um médico de Itabira, humanista e caridoso que chegou a ser prefeito de sua cidade. Informou ainda que o Dr. Mauro era casado com uma filha de Raoul de Caux, (sua tia) e que Rosemary Penido Alvarenga, a autora do livro "Morro Escuro" é nora de Raoul de Caux.

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2 comentários:

  1. Rosemary Penido de Alvarenga, a autora de Morro Escuro, é nora do Dr. Mauro.

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  2. Estive no consultório de meu primo em Itabira levando a minha esposa e pensei em passar na casa dela para pegar um livro pra você. Muita coisa pra resolver,o tempo passando,começou a escurecer e não gosto de dirigir a noite, tive que voltar sem ele.

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