domingo, 25 de junho de 2017

A Estrada para Dionísio - Paulino Cícero de Vasconcellos





Paulino Cícero de Vasconcellos
          Em 1936 eu já conhecera o Dionísio, então distrito de São Domingos do Prata. Naquele ano, era lá que moravam meus pais com meu irmão mais velho, de nome Paulo Dionísio. Mas,eleito prefeito municipal, meu pai arranjou a cavalhada necessária e em companhia de minha jovem mãe e de vários amigos partiu para a sede do município. Não havia estrada que ligasse as duas localidades. Assim, saíram todos na boca da madrugada com destino a outro distrito do município, que, então, se chamava Babilônia. Anos depois, teve sua denominação alterada para Marliéria -  seu nome atual - como homenagem ao general Francês Güy Thomas de Marlière, já desavindo com Bonaparte e, por isso mesmo,  companheiro de caravana de Dom João VI, quando chegou ao Brasil, em 1.808.

Dr. Matheus e Baíca em foto da época.
          Em Marliéria, a caravana dionisiana se hospedou em casa do companheiro e amigo de meu pai, Sr. Juca Pontes. Foi, assim, que lá cheguei eu, viajando pelo mais antigo e confortável veículo de transporte que a humanidade já conhecera: o ventre de minha mãe, onde me enrosquei nos meus três meses de gestação.  E fomos todos recebidos com foguetes, baile, banquete e até fogueiras para melhor iluminação das ruas da aldeola.

          No dia seguinte, o espetáculo se repetiu a seis quilômetros de distância, no distrito de São José do Grama - hoje Jaguaraçu - em casa do sr. Juca Dias, que viria a ser no futuro sogro do advogado e meu colega de Assembleia, Geraldo Quintão.

          A recepção foi que nem a de Marliéria,  acrescida de uma  gostosa singularidade da terra: uma longa e bem cantada seresta... Meio século depois muita gente me falou com saudade e emoção sobre a excelência daquela festa.



           Agora era hora de tomarmos o trem de ferro da estrada Vitória - Minas, na Estação de Ana de Matos. Lá fomos todos até o final da linha, na cidade de Nova Era, que naqueles tempos respondia pelo belo nome de São José da Lagoa. Daí,  por estrada carroçável foi fácil chegar de carro até a cidade em que eu conheceria a luz do sol: São Domingos do Prata.

           Feita a proclamação eleitoral, seguiu-se a posse da Câmara Municipal, que, ato contínuo, seguindo a legislação da época, formalizou a eleição do meu pai como Prefeito daquela unidade municipal abençoada com 2,700 quilômetros quadrados de área territorial - hoje terra-mãe de vários municípios da região.



           Passam alguns meses e venho ao mundo, trazendo uma série de problemas para meus pais. Como levar-me à pia batismal se meus padrinhos estavam em Dionísio - João Araújo e Tia Clarice - ela, também grávida, aguardando a délivrance somente para o mês de julho.
              De fato, o primo Edson - hoje médico em São Paulo - só veio ao mundo no dia 19 de julho.

           Mas eles souberam resolver bem a questão. Portador pra lá, portador pra cá, marcaram  para 13 de agosto a data lustral, ficando a cargo deles combinarem com um padre e tomarem as providências necessárias.
       Meu pai chamou o Zé Botão, musculoso e respeitado servidor municipal, que aceitou a tarefa de levar-me com meus cinco meses de idade, levar-me a pé pelos 30 Km de trilha entre as duas comunidades. Era sair de madrugada e rolar o pé na caminho. Meus pais sairiam um pouco mais tarde, cinco horas da manhã, a cavalo e chegariam juntos a Dionísio.  Fui amamentado, enrolado em vários cobertores, acomodado em um balaio, que foi amarrado às costas do Zé Botão. Assim se planejou, assim se fez .O Zé Botão saiu às duas horas da manhã para cobrir a longa trilha no meio da mata até Dionísio.

        Às dez horas todos se encontraram na praça de São Sebastião, no epicentro do distrito, para o grande encontro batismal. 



              Na cerimônia,  o oficiante foi o  vigário “pro Tempore” da terra,  o jovem padre Pedro Maciel Vidigal. Até hoje fico pensando no gigantesco esforço que terá feito o Zé Botão para seguir todas  as trilhas, no meio da mata fechada  para cumprir seu compromisso com o doutor prefeito de entregar sua cria no lugar e na hora que ele havia  determinado.
          O batizado foi uma festa: não só a religiosa, mas, também, política e comunitária.

           A vida continuou em seu ritmo suave de pequenas comunidades  humanas, onde as pessoas viviam em intenso nível de fraternidade.

           Por aquela época chega à cidade, ou mais precisamente à Prefeitura Municipal, uma luzidia comitiva dionisiana, que não deixou de incluir meu padrinho João Araújo, o coronel José Izidoro Garcia, Peráclito Americano, Nonô de Ovídio e outras figuras gradas do teatro político da terra. Pediram ao prefeito a sonhada obra da construção de uma estrada de rodagem, que ligasse as duas comunidades: Prata e Dionísio. Meu pai, nascido que fora em Dionísio, abriu os livros e as contas do município, demonstrando a absoluta impossibilidade de realizar tal obra, dado o  volume indescartável de obras a cumprir, tendo de outro lado uma carência absoluta de recursos financeiros.
           


              
              Passa algum tempo e em encontro marcado por grande realismo rediscutem o tema e em conclusão positiva todos aceitam a tese da subscrição pública para construção da estrada, que contaria de plano com substancial ajuda e participação orçamentária da Prefeitura Municipal, no valor de quinze contos de réis, além de mais um conto de réis, que, ali mesmo, o prefeito prometeu de seu próprio bolso.

           Foi, então, lançada a campanha. Todos queriam ajudar, uns com mais e outros com menor soma de recursos. Imediatamente se iniciaram as obras, atacadas pela vertente do Dionísio. Para chefiar a legião de trabalhadores com suas enxadas, picaretas, chaulas e enxadões, além das dezenas de carroças puxadas por burro - para chefiar a turma o escolhido foi meu tio Euclides Martins Drumond, entusiasta do projeto, sempre estimulando cada qual a dar  o máximo possível de si próprio.

           Vou fazer um pequeno exercício de memória, valendo-me de apontamentos recolhidos da caderneta pessoal de meu pai. Estes foram os cinco principais colaboradores financeiros para a  execução da obra:
     Prefeitura de S. Domingos do Prata.......  quinze contos de réis (15.000.000 $000)
     Joaquim Rolla (do Rio de Janeiro).......... nove contos de réis (9.000.000$000)
     Cia  Belgo Mineira...............................   um conto e quinhentos
     Dr. Matheus.........................................  um conto de réis
     Sr. Janjão das Laranjeiras.....................  um conto de réis.

           Nenhum outro contribuinte chegou a estes valores. Verdade que o Sr. Janjão impôs uma condição para doar um conto de réis: é que a estrada ao invés de passar pela Fazenda das Laranjeiras, de Dona Cotinha, minha bisavó, passasse pelo terreiro de sua fazenda, nas Laranjeiras-Pilatos, seguindo o morro da Posse, até o alto.

           Meu pai aceitou suas condições, mas teve de pagar um preço. É que Euclides Drumond, administrador geral dos serviços, em sinal de protesto, abandonou o serviço e o comando das obras.
          
A construção da estrada  levantou uma solidariedade geral na região. Destaco entre outras as cidades de Nova Era e Nossa Senhora da Saúde –  hoje Dom Silvério -  que fizeram bolsas de subscrição e enviaram, cada uma delas, quase um conto de réis, enquanto pessoas de Marliéria, Jaguaraçu, São José do Goiabal e outras localidades abriram suas bolsas para ajudar o projeto.

           Conta-se que a inauguração da estrada foi simplesmente apoteótica, com muitas autoridades do Judiciário, prefeitos, vereadores, bandas de música, e dizem que até baile houve. Agora, eu já podia viajar de automóvel para visitar meus padrinhos e parentes em Dionísio, viajando de automóvel, ou, como era mais comum, pegando uma carona  em caminhões de carvão e de madeira. E é curioso notar que construída em anos da década de 30, quando não eram disponíveis na área recursos e equipamentos para construção, ela foi, posteriormente, pavimentada e conservou, centímetro a centímetro, o mesmo traçado original, que meu pai inaugurara.



           Quem iniciou a pavimentação da estrada foi o Governador Newton Cardoso, compadre do ex-prefeito  Weber Americano, num gesto que me pareceu dadivoso, eis que à época já havia a Cia Belgo Mineira  - hoje Arcellor Mital – instalado 54 Km de teleférico para transportar a João Monlevade o negro carvão gerado em seus eucaliptais. Metade da rodovia pavimentaram naquela época, sob os auspícios do governo estadual. Seis anos passados, na condição de Ministro de Minas e Energia de Itamar Franco, destinei recursos derivados do lucro líquido da Cia Vale do Rio Doce para que a pavimentação dos 15 quilômetros restantes fosse executada.

           A verba foi entregue ao governo do estado nos tempos do Hélio Garcia, que simplesmente a desviou para executar obras do anel rodoviário de Governador Valadares.

           Ficaram complicadas as relações entre a Vale e o governo de Minas. Pude testemunha-lo e ouvi do próprio Presidente Fernando Henrique, que era imperioso superar aquela divergência.

           Para resolver a situação o governo Azeredo concluiu a pavimentação. E de tudo o povo de Dionísio esteve sempre informado, através das ondas da Rádio Jovem Tropical, que eu criara na cidade para atender pedido de seu requerente o jovem Éder Araújo. Assim, vi o governador, então candidato à reeleição, bem na véspera do pleito, inaugurar o trecho que fora por ele asfaltado. Por tudo isso, quando se abriram as urnas eleitorais, lá, na velha terrinha de São Sebastião o ex-presidente Itamar Franco lhe aplicou uma generosa surra eleitoral.

         Quanto ao Zé Botão, cujo nome verdadeiro, ganho na pia batismal, era José Guilherme, passei bastante tempo sem vê-lo, após minha mudança para Belo Horizonte.

         Mas um dia, já no meu segundo mandato de deputado estadual, vem-me a informação de que o velho Zé estaria internado em estado grave na Santa Casa de Misericórdia. Fui visita-lo. Qual não foi minha surpresa, quando ao tentar na portaria localiza-lo, dando seu nome para pesquisa  - seu nome e  nome da terra natal -  tive dificuldade enorme para identificar andar e a clínica em que estaria internado.

         E isto só foi possível porque um  funcionário da instituição, que por ali passava, vendo o tumulto que se havia formado, aproximou-se, tomou notícia dos fatos e, subitamente, a todos interrompeu, dizendo que se lembrava do nome e afirmou com certeza que na véspera, em seu plantão na portaria,  determinara o encaminhamento de seu corpo ao necrotério da Santa Casa.

         Lá foi onde cheguei em seguida e pude ver os dois filhos do Zé, ao lado do Manuel Magalhães, proprietário da Rural Willys que levaria os filhos e o pai para nossa cidade em que ele seria sepultado. Os três e mais um servidor  da casa estavam levantando a urna, buscando conduzi-la até a rural, quando pedi que parassem, depusessem o corpo sobre a fria lousa do depósito e lhes disse que seu pai nos meus cinco meses de idade me levara dentro de um balaio preso às costas, a pé, até Dionísio para receber as águas lustrais do batismo. Permitam-me - disse-lhes - que agora eu possa ajuda-lo em seu último passo para a eternidade.

          E, assim, o fiz em cena de grande comoção...

2 comentários:

  1. excelente escrita, emocionante relato; belas lembranças e fotos. adorei o registro.

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  2. Gosto de causos assim , a nossa gente sempre foi hospitaleira e muito familiar , sendo fácil , ler e se sentir dentro do contexto. Amei !!!

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