quinta-feira, 28 de setembro de 2017

O Monsenhor Antônio Fernandes Lellis - Paulino Cícero de Vasconcellos


         Nunca me considerei um grande redator, mas gosto de vez em quando, de prestar alguns testemunhos, de contar algumas histórias. -  todas, invariavelmente, verdadeiras.
     Cessados os meus mandatos parlamentares e a função de secretário de estado em quatro unidades do governo de Itamar Franco e, mais depois de  esgotada a função de presidente do sindicato da indústria de ferro de Minas Gerais, que havia durado mais de três anos, a mão começou a coçar, desejosa, como fora, de renovar o contato com a minha velha Parker 51.
     Hoje, sobre o título de Meus Cadernos narrei episódios que convivi com o presidente Sarney, com o presidente Geisel, com João Figueiredo, Fernando Henrique e meus tempos de ministro de estado de minas e energia e, até mesmo episódios  com  alguns governadores de estado de várias épocas e mesmo algumas recordações e realizações dos tempos em que, aos 21 anos, iniciei meu mandato de prefeito de São Domingos do Prata. Não deixei de fora sequer as aventurosas lembranças das viagens universitárias e até o alvoroço das pensões estudantis, de que guardamos memória inapagável e onde velhas estimas foram construídas e sólidas amizades implantadas pelo resto de nossas vidas.
     Hoje, estou sentindo me em dívida comigo mesmo. É que relancei o olhar sobre as histórias dos começos de minha família, vejo passar diante de mim  hieráticas figuras de tios, avós, bisavós, muitos dos quais só conheci por fotografia. Vejo que a todos, pelo convívio ou pela inacreditável transmissão do dna muito fiquei a dever-lhes.
    Mas um deles houve, que se situa na  pretérita terceira geração, para o qual aumento minhas preces e os meus rogos na tentativa de resgatar um pouco de nossa dívida familial. Trata-se do meu bisavô Monsenhor Antônio Fernandes Lellis.
     Sua história é a de alguém que enfrentou situações e momentos contraditórios, exigindo dele corajosas decisões pessoais, a cujas  consequências e responsabilidades jamais fugiu.
    Fico impressionado com o diferencial de vida entre ele e o padre Amaro, figura central da obra de Eça de Queirós. Enquanto este com o preço da morte e da covardia criou o anti exemplo da nobreza humana, o meu bisavô, pelo contrário, assumiu plena responsabilidade de seus atos, elevando-se numa escala de grandeza humana e de responsabilidade e respeito aos concidadãos.
     Ele nasceu em Santa Bárbara, de família humilde no ano de 1847. Como disse seu filho e  meu avô, graduado em farmácia no ano de 1902 em Ouro Preto, ele nasceu pobre e entre os pobres queria viver. A pele escura própria daqueles que experimentaram no Brasil o opróbrio e a vergonha dos filhos de África, que sustentaram a nossa política escravocrata, colonialista e desumana.
     Em 1876, recebe no convento de N.S. Mãe dos Homens, no Caraça, o sacramento da Ordem, tendo deixado entre quantos o conviveram naquela casa de formação religiosa, um exemplo de notável esforço pessoal, que sabia com ele edificar e liderar naquela colmeia religiosa. E fica trabalhando como padre secular na Diocese de Mariana à qual era vinculada o Caraça.
    É designado poucos anos após para a paróquia de Santana do Alfié, que tinha sob sua responsabilidade as de São Sebastião de Dionísio e a de Santa Isabel, atual Juiraçu -  todos pertencentes hoje ao município de São Domingos do Prata, que tinha à época 2700 km² de território.
     Curiosamente, recolhi dele um exemplo de vida, que foi muito falado e comentado por seus concidadãos. Muitos anos passados os mais antigos diziam de sua voz forte, um pouco tonitruante, somados à forma direta que usava para expulsar da igreja, nos horários de missa, as mães de família, que carregavam nos braços os filhos chorões.
    Sediado em Alfié, fez desde logo muitas amizades. Uma delas, a do Francisco de Assis Vasconcellos, residente na fazenda dos  Assis, implantada no território de Antônio Dias do Rio Abaixo, cuja jovem filha Lucinda, preparava-se para o casamento, que na verdade nunca ocorreu.
Vó Lucinda
     É que nas suas viagens à fazenda para prestar à filha a necessária instrução religiosa para o casamento, elas foram tornando-se cada vez mais constantes e, encontro após encontro, cresce-lhes a intimidade “inter pares”. Pouco depois Lucinda estava grávida. Procuram esconder a realidade da família. Valem-se de roupas mais largas, outras vezes comprimia o volume do ventre ao ponto em que não podiam mais ocultar o fato. É quando, em decisão corajosa, Lucinda se muda da Casa Grande da Fazenda para o moinho de milho, onde prepara a sua cama e vive dias deveras difíceis.
     Somente quinze dias após o seu nascimento o jovem João Damasceno é dado à luz da família e do povoado. E na linguagem irreverente do povo carrega até aos vinte e quatro anos, quando faleceu jovem farmacêutico, todos passam a chama-lo de “João do Munho” ou “João do Moinho”.
     Eu já era prefeito de S. D. do Prata, quando me encontrei com um velho senhor nas ruas do Alfié e, feita a apresentação, ele me disse com absoluta naturalidade: “ Ah! Você que é o nosso prefeito, é o neto do João do Munho. Foi meu companheiro de escola. Gostava muito dele”.
     O concubinato eclesiástico não era raro nos primeiros tempos da nossa colonização. Tanto mais que a primeira diocese implantada no interior do país, fora da zona litorânea, havia sido a de Mariana. Lá chegou Dom Frei Manuel da Cruz, da diocese de São Luiz do Maranhão para ocupar o bispado marianense, após uma viagem que durou, simplesmente, três meses.  Não havia- forçoso é reconhecer- um método de assegurar aos padres e freis que iam designados para as mais longínquas paróquias do nosso interior, um método de assistência espiritual que os apoiasse nos percalços e desafios da sua vida religiosa.
     O Monsenhor, no entanto, pareceu não gostar daquela situação dúplice. Pendurou num cabide a velha sotaina, montou casa na vila, abandonou o ministério religioso e, convivendo com a mulher Lucinda, trabalhava com uma tropa de animais levando e trazendo mercadorias, pelos ínvios caminhos que riscavam as matas da região.
     Pouco tempo depois, já eram três os seus filhos. Além do João Damasceno, meu avô, tinham vindo ao mundo o José Bibiano de Vasconcellos, que depois se graduou em engenharia e cedo, muito cedo, aos vinte e sete anos de idade foi depositado em uma urna sepulcral em Tiradentes, onde seu pai, o Monsenhor, foi por tempos não muito longos designado vigário da Paróquia de Santo Antônio, certamente a mais charmosa de nossas atuais cidades mineiras de turismo. E, por final, veio à adorada figura de Francisca Prisca  Santiago- que, em família, todos chamávamos de vovó Chiquinha.
    Descendência só vieram de João Damasceno e Francisca Prisca, mas a despeito do quanto falamos, todos eram uma família só, em seus desdobramentos e multiplicações gerados pelo etos da vida. Mas, sobretudo, era uma realidade nova que estava surgindo.
     Entre os tempos em que o Monsenhor havia abandonado o hábito religioso, ficou residindo mesmo em Santana do Alfié, não distante da casa do sogro e zelando  uma tropa de animais que ia com frequência à estação de estrada de ferro de Santa Bárbara, levando as mercadorias da terra e de lá trazendo azeite, sal, tecidos, calçados e quanta coisa mais pudesse trazer para a terrinha em que morava.
Dom Silvério Gomes Pimenta
    Mas deu-se um dia em que nas suas andanças tropeiras, em meio à lama alta do caminho, encontra-se com a alvoroçada equipe de caminhantes, carregando um pálio, que protegia o bispo de Mariana, Dom Silvério Gomes Pimenta, que fora o seu colega e amigo nos tempos de antanho, quando jovens seminaristas.
    Naturalmente se reconhecem e lá veem os ralhos diocesanos: “Mas como pode você, Lellis, andar atrás de uma tropa de burros com barro até o peito? Lembra-se do Seminário? Você era líder entre companheiros, muito estimado por todos e ainda obtinha sempre as melhores notas de nossa turma!”
    Ao que Lellis responde: “ Está bem, senhor Bispo, concordo com o senhor, mas quem vai tratar dos três meninos que estão lá em casa e da mãe deles?”.
      “Vamos achar uma solução para isso”, disse Dom Silvério. “Quando passar perto de Ouro Preto ou Mariana, vá até o seminário que desejo muito conversar com você”.
      Esta é a porta que lhe foi aberta. Conversou com o eclesiástico em Mariana, conversou com Lucinda longamente todos os problemas da família e, então, partiu para Mariana, buscando os caminhos de Roma, levando na mala todos os apetrechos que presumia necessitar.
      Tenho comigo três fotos do agora novamente reverendo Antônio Lellis Ferreira, portando sua batina preta, outra com a sobrepeles- todas tiradas na rua Príncipe Alberto, n° 3, logo ao lado da Piazza Della República, em Roma que visitei cem anos depois em companhia de minha esposa e, curiosamente, ainda era um estúdio de fotografia.
      Retornando ao Brasil, teve uma sequência de novas atribuições dentro da própria estrutura  eclesiástica. Todavia desde então não mais retornou à região de Santana do Alfié. Entre outras responsabilidades recebeu a de comandar a Igreja de Santo Antônio, em São José del Rei, hoje denominada cidade de Tiradentes. Mais tarde, vigário em São Geraldo, de onde foi transferido para a Igreja do Carmo, na cidade do Rio de Janeiro.
João Damasceno de Vasconcellos
      Nesta sua vasta peregrinação por paróquias e estados sempre agradecia que nada houvesse, em qualquer tempo,  faltado a sua antiga companheira e filhos, até mesmo porque em Tiradentes já lhe havia falecido, aos 27 anos de idade, o filho José Bebiano de Vasconcellos, tão cedo já graduado em engenharia.  E antes dele, com 24 anos de idade, graduado  em 1.902  na mais antiga escola superior de nosso estado, a famosa Escola de Farmácia de Ouro Preto, e já pai de José Matheus de Vasconcellos, com dois meses de idade, vem a falecer-lhe o filho primogênito João Damasceno de Vasconcellos. Vê-se que ambos se valem do sobrenome Vasconcellos, herdado de Dona Lucinda e de seu pai, tendo sido ambos os irmãos vitimados pelo “mal de siècle”, que varreu jovens e populações inteiras da face da terra,  como  tributo  à insidiosa moléstia da tuberculose.
      Assim, vê-se que ainda fazendo o ministério religioso em Tiradentes tinha todos os seus filhos – inclusive a Vó Chiquinha – portadores de diploma superior, embora a parca maligna houvesse ceifado dois deles.
O menino José Matheus
      É quando chega a vez do neto José Matheus,  que carregava em casa o apelido de Juquita e seria no futuro o meu saudoso pai. Para quem morava em Tiradentes, foi fácil internar o neto com 11 anos de idade no Colégio Santo Antônio, de São João del Rei.
      No ano seguinte, transferiu-o para a famosa Academia de Comércio de Juiz de Fora . E daí, mais um ano passado, fez que o acompanhasse para o Colégio Viçosense, que se localizava bem ao lado de sua nova paróquia, a de São Geraldo, com que o agraciara a diocese de Mariana.
      Mudavam-se os circuitos viageiros do aluno, mas a garantia das despesas com o colégio, livros e todos os etceteras educacionais eram sempre cumpridos pelo “Padrinho”, como carinhosamente o chamava. Antes, a tropa passava pelo Prata, onde arranchava em algum pouso protegido, indo no dia seguinte para Rio Piracicaba, onde tomavam rancho num povoado chamado Ponte do Saraiva e só via o trem em Santa Bárbara. Mas o jovem Juquita com 11 ou 12 anos não dormia no rancho grande, que no Saraiva, pertencia ao Sô Mendes. O dono da casa sempre fazia dele um reservado, dizendo-lhe que não dormiria junto dos tropeiros. ”Você vai dormir junto da minha família e pode ir direto para a cozinha, que as panelas estão cheias de comida...”.
      Já em Viçosa, ele tomava o trem de ferro da “Leopoldina Railway”, passava por Ponte Nova e descia no final da linha, em Dom Silvério, onde pegava   o ônibus do Dídimo Teixeira para  chegar ao seu São Domingos do Prata.
      Terminado o curso pré-médico, que correspondia ao atual segundo grau, vai o José Matheus prestar exame vestibular para a Faculdade de Medicina de Belo Horizonte acompanhado de mais oito colegas de sua escola. Mas dos nove candidatos somente dois logram ver-se aprovados: foi exatamente o José Matheus e Antônio Viçoso Cotta, que viria algum tempo na frente a ser eleito Prefeito de Dom Silvério.
      Aí é outra vida. Cuidar de pensão, conseguir lavadeira, comprar livros caros que o curso de medicina exigia -  é um período de lastro e arrasto... Tenho todas as fotografias das turmas de  primeiro e segundo graus, que meu pai frequentou, com a numeração e a denominação de todos e de cada qual.

      Foi no final do segundo ano que lhe chega carta do Padrinho vivendo ainda no Rio de Janeiro, sob o peso de sua avançada idade. E fala ao neto sobre o peso da idade no rendimento do trabalho.  A idade sobe e as espórtulas vão ficando fracas. Pensava, por isso, que o melhor a fazer seria que ele mudasse para o Rio de Janeiro, onde o padre tinha vários conhecidos na Faculdade de Medicina com alguns dos quais já havia abordado a eventual possibilidade de sua transferência. Não acharam que houvesse dificuldade e se a tanto se somasse a possibilidade de ele vir a morar em companhia do padrinho na casa paroquial seria um grande alívio para suas finanças exauridas

O jovem José Matheus
         É para lá que vai o jovem José Matheus, numa viagem nova e muito longa, conhecer um novo mundo e uma nova escola, que reunia os maiores luminares da medicina do país. E ao terminar o curso de medicina, quando meu pai toma preparativos para assumir responsabilidades fora do Rio, sente que o padrinho deseja recolher-se em uma casa de repouso própria para a terceira idade eclesiástica. Ele já havia ultrapassado os 81 anos de idade.  É para lá que vai, estipendiado pelo neto, que o visita sempre, até poucos anos depois fechar definitivamente os olhos para a eternidade.

3 comentários:

  1. Muito bom, Fábio, você acrescentou a ilustração correta, com as fotos.

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  2. Parabéns Paulino Cícero de Vasconcelos. Muito interessante e rica a narrativa histórica de seu bisavô.

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  3. Lendo está narrativa, pergunto: qual e a relação do monsenhor Lellis com o sobrenome Lellis de minha família? Sou filha de Pedro Lellis, filho do Dr. Edelberto Lellis.

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