quarta-feira, 2 de novembro de 2011

RECORDAÇÕES DE DIONÍSIO - Darcy Duarte Figueiredo



RECORDAÇÕES  DE  DIONISIO

Por Dr. Darcy Duarte Figueiredo

 Eu trabalhava em Rio Piracicaba, havia quase um ano, mas a renda não era satisfatória. Indo a Belo Horizonte, em meados de Dezembro de 1942, lá encontrei com o Dr Antonio Guerzoni, que saíra de Dionísio há poucos dias. E ele deu-me boas informações sobre esta aldeia, então distrito de São Domingos do Prata: terrra de muito boa qualidade, povo trabalhador, honesto e pacífico. Conseguiu lá algumas economias e estava indo para São Paulo.

            Ele residida junto com José Neves Sobrino. Pedi-lhe então para escrever a José Neves, que eu iria ocupar o lugar por ele deixado.

            Despachei para Dionísio duas caixas de madeira com livros e roupas, outra com apetrechos médicos e uma estante para livros. Dr. Antonio Guerzoni havia deixado lá a mesa para exames médicos, mesa esta que já havia encontrado na casa.
           
A 30 de Dezembro de 1942, parti de Rio Piracicaba. Levava pouco dinheiro, mas uma riqueza em amizades. Depois de viajar de Rio Piracicaba a Dionísio, em duas marchas, quase sempre debaixo de chuva, usando capa gaúcha e guarda-chuva, parei em frente da casa onde residia José Neves. Minha besta atolou as patas até quase ao meio das canelas.
            Casa onde morava José  Neves, 
a mesma que morou a Familia Ulhôa
 durante muitos anos


Já na janela, José Neves (foto ao lado)  recebeu-me com um sorriso amigo, e foi dizendo com seu sotaque nordestino, do Rio Grande do Norte: - Ainda bem que você chegou, rapaz. Há uma fila de clientes lhe esperando, e o Nelson Ulhôa está mal. Já na sala ele abraçou-me com entusiasmo.
           
Tomei um banho em um grande chuveiro de água quente, aquecida por serpentina em fogão de lenha. Acabava de tomar um lanche preparado por Sá Esméria, quando Zé de Vino, farmacêutico, chamou-me para examinar Nelson Ulhôa.

Atendeu-me sua senhora, D.Irene, professora culta e experiente. Abatida, enxugava as lágrimas. Ela havia anotado durante uma semana, com linda caligrafia, pela manhã e a tarde, a temperatura e pulsações do marido. Esta sua providência facilitou o diagnóstico. Depois de examinar Nelson, diagnostiquei febre Tifóide.

            No dia seguinte, alí pelas dez horas, fui visitar Peraclyto Americano. Levava para ele uma carta de apresentação do seu sobrinho Pedro, meu colega de turma e muito amigo.

            Estendi-lhe a mão, apresentei-me e, já assentados, ele leu a apresentação do Pedro. Deu então um sorriso acolhedor, dizendo:
-         Estou às ordens do Senhor.
-         Por favor, trate-me de você.
-         Está bem; e chamou a sua senhora:
-         Cocota! Venha conhecer nosso novo médico; é colega de turma do Pedro.
-         Estou indo!
Demorou-se um pouco para atender à vaidade feminina, e apareceu sorridente estendendo a mão.
-         Muito prazer em conhecer o Senhor.
-         Por favor trate-me por você.
Depois de alguns minutos de conversa apareceu um cliente para Peráclyto e despedi-me.

Durante o tempo em que caminhei o pequeno pedaço de rua até a minha casa, muitas pessoas me cumprimentaram. Já sabiam que havia um novo médico em Dionísio e queriam me conhecer. Os dionisianos eram abertos, simpáticos, e já me cativaram naquele primeiro dia.

Dionísio tinha tres elementos importantes para o seu desenvolvimento: terra de ótima qualidade, seu povo, melhor ainda; e a média cultura de sua população.

* * *


Quando cheguei em Dionísio, o povo andava entusiasmado com o desejo de emancipar sua terra, abrangendo os distritos de Goiabal, Juiraçu, Marliéria e Jaguaraçu com distritos. O motivo para a criação de um novo município, era que São Domingos do Prata, formava-se de nove distritos, incluindo o da sede. Era então impossível ao Prefeito, dar uma assistência efetiva a todos eles e manter a necessária fiscalização das atividades dos habitantes, e justa cobrança de impostos. Alguns destes distritos eram distantes e de difícil acesso.

Achei impossível partir um município ao meio, em uma revisão administrativa. O que acontecia nestas revisões, era elevar à sede de municipio, os distritos que apresentassem certas condições: determinada renda, população, e certo número de casas e eleitores. Comentei isto pela rua. Mas o povo, já entusiasmado, não arrefeceu seu ânimo.

Eu residia em Dionísio a apenas um mes e uma semana, quando houve a primeira reunião do Movimento Pró-emancipação de Dionísio, a 7 de fevereiro de 1943. A convite do Coronel José Izidorio Garcia, fiz a ata desta reunião como secretário interino, escrevendo a seguinte introdução, para comprometer o povo com aquele movimento:

“Ata da primeira reunião do Movimento Pró-emancipação de Dionísio, do município de São Domingos do Prata, realizada na Casa do Teatro de Dionísio, aos sete dias do mes de fevereiro de um mil novecentos e quarenta e tres.

Impelidos pelo desejo coletivo, elementos de destaque da sociedade de Dionísio, distrito do município de São Domingos do Prata, viram-se obrigados a convidar o povo, para se reunir na casa do Teatro de Dionísio, às 14 horas do dia 7 de Fevereiro de 1943, a fim de que se esclarecessem as aspirações deste povo.”

O teatro ficou cheio e pensei: estamos na ditadura onde tudo é possível; depende só de padrinhos. Tive leve esperança na criação do município com sede em Dionísio.

Redigi com entusiasmo o memorial, com muitas fotografias, dirigido ao Governador Benedito Valadares. Memorial revisto pelo Dr. José Matheus de Vasconcelos, dionisiano residente em São Domingos do Prata, onde fora Prefeito eleito, mas que completados os quatro anos de mandato que lhe foram outorgados pelos eleitores, ele pediu demissão do cargo. Não aceitava permanecer Prefeito em regime ditatorial. Foi então nomeado Prefeito, o Dr. Nelson Lelis Ferreira, filho do velho médico e político Dr. Edelberto Lelis Ferreira. Dr. Nelson, elemento de confiança da ditadura, era naturalmente contra o desejo dos dionisianos.

Nesta época, foi criado o municipio de Barão de Cocais, antigo distrito de Santa Bárbara, então chamado São João do Morro Grande.

* * *


Fiquei noivo a 23 de Setembro de 1944, em Santa Bárbara, minha terra natal. Preocupava-me não haver uma casa para morar após o casamento, pois, as boas casas de Dionísio eram habitadas por seus proprietários.

Um dia, quando João Araújo Sobrinho, Peráclyto Americano e eu, que éramos amigos confidentes, conversávamos quase à frente da casa de Peráclyto, falei-lhes sobre a dificuldade, de encontrar uma casa para alugar. João Araújo foi logo dizendo: - Vou dividir a baixada do meu pasto em lotes e dar um lote a cada um de vocês, um junto do outro e em frente à minha casa.

João Araújo era um mão aberta e fiquei devendo-lhe muitos favores, inclusive hospedagens.

Peráclyto e eu nos calamos durante alguns instantes, pegos pela surpresa. Peráclyto disse então: - Aceito por um preço razoável. E, devagar, vou construir uma casa grande.
-         Não posso aceitar nem de graça, pois não tenho condição para construir uma casa.

Passados alguns dias fui à Santa Bárbara matar a saudade da noiva e cheguei até Belo Horizonte ver meus pais. Devo ter ficado fora uns dez dias. Quando voltei, João Araújo entregou-me a escritura do lote, já cercado com cerca de arame. E, dentro dele, peças de madeira de lei doadas por Antonio de Pádua Martins da Costa (Tonico Moreira), e uma grande quantidade de lajes de pedra.

Senti-me obrigado a construir a casa, pensando em tomar um empréstimo bancário. João Araújo, querendo diminuir a grandeza de sua bondade, disse a Peráclyto e a mim:
-         Construindo aqui, vocês vão me ajudar a vender os lotes.

Como me recordo com saudade, destes dois amigos e de tantos outros. João Araújo, como já disse, um mão aberta, e Peráclyto Americano um homem prudente, inteligente, dotado de muitas habilidades que nada tinham a ver com sua profissão. E qualquer movimento que surgia para algum melhoramento de Dionísio, ele era um dos primeiros a apoiar e ajudar. A primeira estrada de automóvel para Dionísio deve-se à sua pertinácia. Tranquilo, prudente, algumas vezes aconselhei-me com ele a respeito de pessoas e fatos.

Por aquela ocasião, a Belgo Mineira começou a fabricar carvão em matas de Dionísio e Goiabal. Pagava-me um conto de Reis ao mes, para prestar assistência médica aos empregados e familiares dos empreiteiros que o fabricavam.  Assim consegui construir a casa sem tomar empréstimo.





Casa construída pelo Dr. Darcy Duarte Figueiredo, ao lado da casa grande, construida por Peráclyto Americano e que foi vendida à Belgo-Mineira para ser transformada no primeiro hospital do Município.






Casei-me a oito de Dezembro de 1945. Foram dois casamentos na mesma hora: Dr Waldyr com Maria José (Pia), irmã de Francisca (Cecy), com quem me casei.



Queríamos passar a lua de mel em Vitória ou no Rio de Janeiro, mas ainda chocadas com a perda prematura do pai, o Sr. Arlindo Ayres, nossas noivas preferiram ficar poucos dias em Belo Horizonte e passarem mais dias junto aos seus. Então, depois de quatro dias em Belo Horizonte, voltamos para Santa Bárbara.
Passados tres dias, recebi um telegram de Orlando Américo (Landico), outro grande amigo: “Dois filhos meus com tifo, e outras pessoas. Venha urgente, por favor.”

Sexta-feira, dia 14 de Dezembro, pegamos o trem em Santa Bárbara, um automóvel em João Monlevade, que custou a vencer o Morro do Peão, e chegamos à São Domingos do Prata. Aí dormimos em casa de minha tia avó Modesta.

No outro dia, bem cedo, mandei buscar minha besta de nome Jardineira, excelente animal. Saía para alugar uma besta mansa e macia, para Cecy viajar com segurança e menos sacrifício, pois ela não sabia cavalgar. Fiquei admirado, quando vi chegar a charrete de luxo do Coronel José Isidorio e o Evelyn Americano desceu.

-         Bom dia doutor, fizeram boa viagem ?

-         Evelyn! Que tranquilidade você me dá. Até aqui sim.

Evelyn era um adolescente magro e muito educado, como eram os demais filhos de Peráclyto. A charrete tinha capota conversível e assento estofado. Ela ia à frente a passos e eu atrás, protegido pelo guarda-chuva e capa gaúcha.

Foram oito horas de viagem. No dia seguinte à nossa chegada a Dionísio, um domingo, depois que fomos assistir a missa, quando Cecy foi muito observada, começaram as visitas. Estavamos hospedados em casa do João Araújo, pois nossos móveis não haviam chegado. A bondosa D.Clarisse, sempre sorrindo, atendia a todos com amabilidade. Neguinha que cuidava das minhas roupas foi cumprimentar Cecy e lhe disse:

- Quando a senhora passou em frente a Igreja, vestida de preto com a cara bonita e triste, estava parecendo Nossa Senhora das Dores.

Ela exprimiu bem o cansaço de Cecy, depois de viagem tão estafante, à qual não estava habituada, com frequentes e inesperados balanços da charrete.

Cecy ficou poucos meses em Dionísio, mas muito comunicativa, chegou a fazer boas amizades. Estavamos felizes em Dionísio quando inesperadamente, recebi uma carta do Padre Levi, vigário de Rio Piracicaba. Dizia ele: - Estamos aqui reunidos em Monlevade, Dr. Parreiras, Rui Rodrigues e eu. Concluimos que você, no momento, é o único que poderá trazer a paz ao nosso município. Por favor, seja nosso duplo anjo salvador. Ele referia-se à assistência médica e à administração da Prefeitura.
Não respondi logo a sua carta; necessitava pensar muito, pois, fiquei em séria dúvida afetiva. Mas passados cinco dias, Dr. Roberto Souza Dias, engenheiro da Belgo-Mineira em João Monlevade, procurou-me em Goiabal, e pôs-me a par da situação conflitante do município e da malversação da renda da Prefeitura.

Fiquei muito indeciso, mas, pesou o apelo do Padre Levi, que, sem ser politico, era um verdadeiro pastor de almas. Suas almas estavam sofrendo pela ação de poucos que se encontravam no poder. Pesou também, porém, muito menos, o fato de Cecy ficar a apenas uma hora de trem de Santa Bárbara.

Pelo interesse da Belgo-Mineira na região, Dr.Roberto garantiu-me que Dionísio não ficaria sem médico e ele já estava autorizado a comprar minha casa para sua moradia. Dr Walter preencheu a minha falta.

* * *

As vezes o destino escreve certo por linhas tortas. Na eleição estadual para o mandato de 1947-1950, conseguimos boa votação para meu irmão Heli Duarte Figueiredo, principalmente nos municípios de Rio Piracicaba e São Domingos do Prata, sobressaindo Dionísio. Ele foi eleito deputado estadual e comprometeu-se a trabalhar pela emancipação de Dionísio.

Como técnico do Departamento de Assistencia aos Municípios, da Secretaria do Interior e Justiça, ele era bem relacionado com os deputados que procuravam aquele departamento em certa frequencia.

Parece que para a emancipação do municipio de Dionísio houve certa dúvida a respeito da população, pois foram pedidos registros de nascimentos em Dionísio.

São Domingos do Prata trabalhou ativamente contra a emancipação de Dionísio, mas o município de Dionísio, foi criado pela lei número 336, de 27 de Dezembro de 1948.

Passaram-se os anos e Heli formou-se em direito em 1949, depois de haver iniciado o curso de engenharia que abandonou. Reeleito para o mandato de 1951-1955, ele foi Secretário da Comissão Executiva da Assembleia em 1951; Presidente da Comissão de Assuntos Municipais e Interestaduais de 1952 a 1954; membro da Comissão Especial para Revisão da Lei Orgânica Municipal em 1953; e da Comissão Especial de Divisão Administrativa e Judiciaria, também em 1953.

Apesar do Prefeito de São Domingos do Prata ser na ocasião, o Sr Felix de Castro, Dr Heli procurou o Dr Jose Matheus de Vasconcelos, a quem já conhecia e por ter mais conhecimento sobre o assunto que desejava tratar. Estabeleceu-se entre eles o seguinte diálogo:
-    Dr. Matheus é possível administrar bem São Domingos do Prata, com sete distritos, não contando o da sede, com alguns deles distantes e de difícil acesso ?
-    É humanamente impossível. Os distritos ficam quase esquecidos e a arrecadação de impostos é mínima.




Deputado Heli Duarte Figueiredo


Recordei-me então do bom amigo Peráclyto, quando meu irmão Heli contou-me em Monlevade, a conversa que tivera com Dr Matheus. Dez anos antes, em 1943, em uma das reuniões do Movimento Pró-emancipação de Dionísio, Peraclyto insistia justamente na impossibilidade de administrar os nove distritos incluindo a sede. A lei deveria prever estes casos, dizia ele.

Dr Heli perguntou novamente ao Dr, Matheus:
-                      Como você vê a emancipação de Goiabal, Marliéria e Jaguaraçu?

-                  Muito bem. Mas estes distritos não estão em condições de se emanciparem.
-     Muito provavelmente não, mas nesta revisão, ninguém está obedecendo a legislação a respeito. O Presidente da Câmara está deixando o barco correr.

-         Se conseguir a emancipação destes tres distritos, será muito bom. São Domingos do Prata será mais bem administrado e sua renda aumentará. E os tres novos municipios emancipados receberão do governo federal, a cota do Fundo de Participação dos Municípios.

Deste rápido diálogo, foram criados os municípios de Goiabal, Marliéria e Jaguaraçu, pela Lei n. 1039 de 12 de Dezembro de 1953. Até hoje, esta foi a revisão que criou o maior número de municípios. De lá para cá, tem havido mais severidade.

Belo Horizonte, 13 de Fevereiro de 2000 


Observação:
O Deputado Heli Duarte Figueiredo, foi o responsável pela apresentação na Assembleia Estadual do projeto de lei para emancipação de Dionísio. Colaborou ativamente com os dionisianos na causa, já que o projeto havia sido rejeitado em duas ocasiões anteriores. Ele orientou os dionisianos sobre o que precisava ser feito para aprovação do projeto e aqui tem uma história muito interessante.

2 comentários:

  1. Que depoimento bonito e sincero. Vejo quanto era difícil a vida naqueles tempos e que, se um dia reclamei daquelas estradas tortuosas e que me davam muito enjôo por 2 horas, é por não ter conhecimento de fatos como estes, acontecidos até mesmo com um médico tão importante e de tão grande estima por todos. Parabéns, Fábio, por dar-nos a oportunidade de saber mais sobre a história destes, que fizeram de Dionísio a cidade tão adorada e acolhedora que é.
    Adriana Lenoir Passos

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  2. Meu pai Júlio Duarte Lana primo de Dr.Darcy e de Dr Heli Duarte Figueiredo foi vereador nessa época.

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